A tela é pequena; tomá-la por uma miniatura não seria descabido . Comparo-a a um Vermeer, se o velho holandês houvesse ousado pintar nus assim . Compará-la a um Vermeer pode surpreender a princípio. Seria mais previsível uma comparação com Lucien Freud, de cuja imagerie Anderson se nutriu em seus exórdios e na qual ainda deve, sem dúvida, encontrar fecundidade. Lucien Freud é mais brutal do que o holandês, e a delicadeza este último talvez pareça inteiramente estranha ao universo de Anderson. Mas não é.
a comparação com Vermeer não se restringe às dimensões dessa obra ou à óbvia riqueza da paleta de Anderson, trabalhada com delicadezas surpreendentes. Essa pintura é também tributária da fotografia, serve-se dos mesmos expedientes fotográficos que outrora serviram ao mestre de Delft quando este empregava a camara oscura. Os enquadramentos, ângulos, a saturação da cor, o meticuloso tratamento dado aos volumes, as coagulações da luz: tudo é fotográfico. Mas essa transposição de imagens em pintura ultrapassa e refaz a imagem capturada por um aparelho em linguagem absolutamente pictórica. O fazer artístico que falta à fotografia s' opera na manipulação da imagem e sua reconstrução como coisa pintada. O material é reelaborado em seus mínimos detalhes, duma curva a uma mancha, das texturas às graduações luminosas, e, no fim das contas, a fotografia é superada - suplantada - por uma alta factura pictórica. Anderson não é, pois, menos delicado em suas manipulações do que o teriam sido Ruysdel ou Fabritius.
que Anderson haja nomeado seus nus femininos "paisagens" apenas reforça a analogia com a pintura dos Países Baixos do século XVII à qual me refiro comparando-o a Vermeer . Essas "paisagens" poderiam chamar-se igualmente "naturezas-mortas", pois paisagem e natureza-morta s' equivalem naquelas escolas. Há na pintura de Anderson uma redução da mulher à matéria que constitui seu corpo e à repercussão de sua imagem na retina, uma objetificação da mulher que subtrai sua individualidade: aí reconhecemos eventualmente um rosto, mas não uma pessoa. Interessam as variações cromáticas da epiderme, as dobras da pele, a flacidez da carne, o brilho de elementos da anatomia que se separam cirurgicamente do resto do corpo, mas nada de sentimento ou psicologia . Assim como uma natureza-morta feita de objetos diversos arranjados sobre um móvel qualquer, as carnes e ossos são dispostos sobre colchões e pisos para resultar num arranjo sabiamente composto; do mesmo modo que numa paisagem, aí vistas s' apresentam em planos superpostos.
a telinha em questão é uma composição preciosamente trabalhada . É possível abstrair a figura representada para aí não se ver mais do que um ângulo da perna contrapondo-se à horizontal do braço estendido à esquerda do observador. Feixes de dobras de tecido podem ser redirigidos ao ombro que, centro do quadro, provê um eixo perpendicular à superfície. A articulação de linhas e ângulos em torno desse eixo revela a máquina a que se reduz esse corpo feminino na mecânica do conjunto. O rosto não diz nada, mal o entrevemos. As carnes s' esfriam, apesar de seus rosas e rubros luminosos, como s' estivessem expostas num açougue. Pode-se assinalar aí uma vinculação do autor ao rigor construtivo dum Cézanne, que, disso bem sabemos lh' impregnara a produção de forma indireta, através de suas releituras de Picasso nos anos 1990. A pesquisa formal de Anderson se desenvolve com foco em estruturas anatômicas, é certo, mas esquemas geométricos dos mais rigorosos subjazem aos amálgamas de tecidos orgânicos representados na superfície policrômica, abarcando também o fundo.
inútil procurar outros sentidos nessa obra além da crueza dessa realidade devassada: o corpo é coisa, é objeto, é matéria. Não há significações ocultas ou deixas para a verborragia de letrados ávidos por exibirem sua retórica. Há, pelo contrário, uma total recusa em pôr a imagem a serviço da palavra. A imagem é implacavelmente atirada contra a retina, um "cale a boca e engula”. O que mais deve fazer uma obra-de-arte?
...
Anderson é um artesão, um perito, repõe as habilidades especiais, de dificílima aquisição, no centro da arte: a visão treinada em primeiro lugar; em seguida, a mão que tudo registra.
também aqui o nexo com a fotografia é estreito: a mão é um instrumento de registro preciso tanto quanto a fotografia. Mas a mão intervém na construção e manipulação da imagem, fazendo-a. uma nota elitista s' introduz por trás desse fazer, onde a autoria s' imprime despoticamente . O autor é um autocrata, cuja vontade arbitra na constituição do visível. O retorno ao objeto artístico, de fatura laboriosa e irreprodutível, assume um caráter de resistência nesse artista.
[etc.]
[uma reprodução fotográfica dessa obra não oferece senão uma idéia muito grosseira das qualidades cromáticas dessa pintura, que é uma obra-prima . melhor vê-la no atelier, quando uma simples variação na luz que sobre ela incida revela, aos que disponham de fina percepção, nuanças sutilíssimas . melhor vale, pois, uma visita ao atelier do pintor.]
caius marcellus araújo
texto publicado originalmente no www.clausclars.blogspot.com
Anderson carrega nas costas o doce peso da liberdade. É uma pintura feita na Bahia: baiana sem estereótipos. É um trabalho universal que retrata, na quase totalidade, mulheres nuas que passaram pela vida do artista. Um universo fechado com poucas frestras de luz, numa torre ou numa caverna do Barbalho. Uma obra resistente, pulsante. A arte ilimitada dentro dos limites de um pequenino ateliê. Como vive uma vida livre e iluminada, o jovem Anderson, de 36 anos, parece prescindir da luz. Com passar dos anos, a arte de Anderson deverá começar a ganhar naturalmente a luz definida de Salvador. É uma aposta, um pule de dez. Quem viver, verá a evolução de um dos mais talentosos artistas do Brasil. Ele, como Goethe, bradará: "luz, quero luz!"
Cláudio Renato
novas paisagens
Olá,
Quando comecei com este blog, a idéia era apenas comunicar às pessoas próximas o que eu estava fazendo... Aos amigos e admiradores mais próximos que me encontravam e perguntavam querendo saber o que estava eu produzindo, pois já faz um bom tempo que não participo de mostras aqui na cidade de Salvador... Mas o que aconteceu depois foi impressionante, os amigos foram sugerindo esse blog para outros amigos e comecei a receber várias mensagens elogiosas, comentando a técnica que adquiri e a beleza e a força dos trabalhos. Agradeco a todos que me enviaram mensagens e incentivos. Por outro lado comecaram a surgir também cobranças por atualizações mais constantes, então gostaria de explicar a todos que o ritmo de atualizações deste blog depende do meu ritmo de produção que nem sempre é dos mais rápidos.... Pois pintar as paisagens é um processo que me demanda uma reflexão sobre a figura/carne/pele e a pressão do espaço circundante sobre ela... Tenho que pensar, lembrar, será que é assim mesmo este braço? E esta costela? Será que cabe mais uma dobra de pele? É um exercício conjunto de memória e ação pictórica na tentativa de, como o Francis Bacon diz: “capturar a aparência com o conjunto de sensações que essa aparência concreta suscita.” ou ainda, capturar o fato! Uma imagem que exista em si mesma... a definição de paisagem tem a ver com isso, capturar o fato! O ponto de vista, a visão mesmo, do que é mais importante...
Paisagem: extensão de território que se abrange num lance de vista; panorama, vista...
Depois de muitas paradas, milhões de xícaras de café e quatro meses de trabalho, apresento duas novas paisagens; a primeira delas me tirou o sono e as forças durante estes meses, mas que ao final me deixou e me deixa, cada vez que olho para ela, mais contente; pois ali vejo que consegui capturar o espanto original, aquele espanto de quando vi esta cena pela primeira vez no momento em que a fotografei... O fato está ali, remontado, relembrado, arruinado pelo que se acrescenta... Mas este acréscimo é sempre aquilo que a pintura quer dizer... e é preciso sempre aprender a deixar a pintura dizer tudo que tem a dizer. A outra paisagem (repouso em sombra natural 1046) é um pequeno quadro monocromático realizado em menos de 10 dias na tentativa de sair da imersão em que me encontrava, acabei de pintá-lo ontem (16/04/09) e o entrego aqui juntamente com os outros para apreciação... Ainda não consigo comentar nada sobre ele, pois ainda estou impregnado pelo fazer... depois quem sabe?
Ps. Estou dando aulas de pintura. Quem se interessar pode entrar em contato:
andep8@gmail.comAbraços para todos
Paisagens
...estava acordando, olhei pela janela, para contemplar o novo dia, a visão da baía, a ilha e todos os prédios da cidade velha; ao retornar o olhar para o interior do quarto, me deparei com uma cena de uma beleza ainda maior que era a de uma mulher dormindo, esgotada, depois de tentar me convencer da sua sensualidade, da sua inteligência, da sua habilidade em si e em me proporcionar prazer sexual... depois, o que restou foi este corpo abandonado em si mesmo, suportando o peso de sua humanidade banal, sem graça ou vaidade... uma paisagem... mas dotada de uma intimidade muito mais evidente para mim que a baía, a ilha e as casas. Me lembrei então, de todas mulheres que desde criança vi nesta mesma condição: mãe, tias, irmã, amigas, amantes, modelos; carregando as marcas de suas lutas anteriores no desencanto de seus corpos, cada hora mais flácidos. A música do tempo.
Estas figuras/paisagens vivem em minha imaginação (e imagino na de outros), através dos anos, e assim permanecem porque apesar de sua obviedade é aí que se revelam os "maiores terrores relativos à pequenez da existência". É alí que nos damos conta do estranhamento da nudez e da fragilidade da carne que encerra estes corpos em seu cansaço.
"Na vida tudo são fardas, o corpo só é civil verdadeiramente quando está despido".
José Saramago
"O que há em mim é sobretudo cansaço,
nao disto nem daquilo,
nem sequer de tudo ou de nada,
cansaço assim,
ele mesmo.
A sutileza das sensaçoes inúteis,
as paixoes violentas por coisa nenhuma,
os amores intensos por o suposto em alguém.
Essas coisas todas.
Essas e o que falta nelas eternamente...
Tudo isso faz um cansaço,cansaço...
(Álvaro de Campos)
“Um retrato da nossa ilusão partida, sentido maior de nossos dias. Um partir-se em estado de natureza, um gotejar das flores em vão. A luz altiva corta o corpo exasperado. Percebendo o corte, desaparece a dor do corpo violentado, há consumo ao vê-lo e o resto é alheio. Admirando a luz, toda a atmosfera criada ganha vida nas curvas e esquinas do corpo derradeiro, a mais ausente das fugas, um já não poder mais lutar absorto contra a mãe essencial em toda sua frugalidade, aquela mulher sublime em sua maternidade mortal, dor e êxtase, rainha da transitoriedade e das paixões. Cá de fora, vendo não só a multidão que se consome, mas mesmo além das sensações esparsas e esgarçadas, a poeira dos tempos se assenta sobre o confortável manto da normalidade consentida. A doação eterna – do corpo e da vida – que a todos é falível esquecer, se perpetua no ciclo de amor e crueldade.
O feminino realiza seu esforço de expandir e dar graça. “Observo distraído... fique como quiser...” É brincando com o programado que se eterniza o instante da desobediência – o desobedecer traz o fogo e a paixão orienta o afeto para organizar nossa difusa emoção, transformando-a em saúde e vigor. A competência da arte é dosar esses afetos, selecionar o instante oportuno para disseminar espasmos apaixonados num mundo já renegado em seu direito de sonhar. O homem próprio divide seu tempo de busca com olhar apurado, decantando afeições, gestos, refluxos, turbilhões, cumprindo sua tarefa de dignidade na experiência do corpo mutilado, fragmentado em cada célula-evento, sentindo a distinção de aurora.
Separar para conhecer: juntar as peças da moça para demover a idéia de conhecê-la por inteira. Como um todo, as sensações ficam retidas ao movimento e a natureza do seu intento – sua real paixão - desabrocha no calor de seu encobrimento. Se friccionado com o olhar a calidez dessa imagem insinua os contornos tangíveis ao encontro, uma conturbação mental assola os percalços da moralidade, o choque do outro entorna na mira e no erro – somente aí ele ressoará ao tom da violência imagética de nosso tempo e sua fragmentária idade gozosa....”
Daniel Vilasboas
desenhos
...o desenho nem sempre é o ponto de partida para a pintura, mas é sempre o companheiro das horas em que ela se afasta...
2 comentários:
O que dizer da tua arte a não ser que eu não a vejo, sinto-a na alma
como uma lança afiadíssima!
Parabéns!
Abraços
seu trabalho é sensacional!
freqüentarei esse lugar.
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